Anotações de um diário
As considerações à obra de Décio Soncini têm como objetivo registrar fragmentos de inúmeras conversas e do convívio contínuo com a pintura por ele propõe, tentando elucidar o leitmotiv ao espectador desavisado, uma vez que, como ele diz, "sua função não é falar, é pintar, e a sua obra fala por si". Transcrevo assim registros de um diário, palimpsestos recobertos por pinturas, uma viagem na memória repleta de vazios, porque essa topologia é um processo de catarse de uma história alterada. A pintura de Soncini passa à primeira vista a idéia de que se trata do registro da solidão humana, da condição de unicidade do indivíduo e da dificuldade de diálogo entre os seres, não uma apologia da solidão, mas o registro visual de uma realidade que o incomoda e à qual se nega aceitar. Através de seu percurso existe um continuum de imagens, que independentemente do enfoque transmitem essa idéia. De fato, além das figuras humanas que compõem seu repertório, máquinas, cenas de ateliê, interiores, todos estão envoltos por clima de abandono, solidão e nostalgia que impressionam o observador, dando-lhe a sensação de desesperança. Não é essa, no entanto, a visão de Soncini, que aliás não tem uma visão amarga da realidade - embora não seja um otimista na acepção plena, - ela é sempre da possibilidade do diálogo e da superação dos problemas. Antes de penetrarmos no que seria o cerne da questão pictórica para ele, convém assinalar outro fato que se sedimentou na opinião escrita: a de que tendo feito parte do chamado Grupo Guainazes seu registro de mundo seria situações típicas de uma classe social marginalizada, moradora na periferia, com desilusões e problemas afetos a isso. Este é um erro capital em relação à Soncini, pois nunca morou na periferia e o que tenta mostrar nada tem a ver com isso, é um registro pessoal de sua visão do mundo, de problemas íntimos que o afligem, de indagações que quando aprofundadas, percebemos serem universais. "Desde o início estou contando a mesma história, podem mudar os personagens, os assuntos, mas a história é a mesma. Estou sempre pintando os meus fantasmas", explica o artista. O que seria um fantasma? E ele assim o definiu: "Fantasma é a essência do objeto, o que ficou na memória". Este indício é bastante significativo para compreendermos sua pintura - visa à essência dos objetos e dos seres, na compreensão do mundo que o cerca. Enfaticamente se define como um romântico, o oposto do que seria um realista. E mais, para ele ser contemporâneo é ser realista, e a realidade é sua fonte de angústia. Outro ponto revelador - a angústia, na verdade a de compreender o mundo, as relações entre as pessoas, a natureza intrínseca dos objetos e seu relacionamento com os homens. Na série com o tema "Máquina-de-costura", um objeto de seu cotidiano, uma velha máquina de três gerações é o objeto associado à sua história pessoal, a lembranças que ele não declina. Na sua visão, ela é o primeiro elemento da tecnologia introduzido no lar, um elemento que deve ser domesticado, algo que é desconhecido, que deve se integrar pelo convívio diário. Esta questão do medo do desconhecido é o ponto vital na obra de Soncini, nos remetendo à indagações que foram comuns a inúmeros pensadores, e para nos determos apenas em um, vem-me à mente Platão, na alegoria da caverna. O posicionamento de Soncini, sem ele o saber é o mesmo da alegoria de Platão, bastando lembrar seu depoimento quando afirma "nasci em São Paulo, mas não consegui ainda sair sequer do meu próprio quarto". Essa idéia de "quarto-caverna" aparece na pintura como sombra e luz, toda sua obra sendo marcada pelo uso da luz, que pode ser difusa, cortante, envolvente, transfixiante, dependendo de quanto conseguiu penetrar no âmago de seu universo. As sombras para ele não são sombras, são o próprio íntimo das coisas, e a luz é o conhecimento que ele vem a ter da coisa. Essa é a razão pela qual às vezes o assunto está envolto pela luz, como aura envolvendo o objeto sem tocá-lo, pois o cerne não foi atingido, o que remete à frase: "Pinto os meus fantasmas". Ele tenta a luz do conhecimento, mas o assunto se recusa a recebê-la. A luz assume então o papel de instrumento para sair da solidão, o bisturi na dissecção em si mesmo e no mundo. Esse conhecimento seria dissociação entre aparência e realidade, sendo que a aparência não é oposta à realidade, mas complemento da mesma. No quintal
Na pintura de Soncini dos anos 90 vemos estruturas e exteriores, muros, e a abertura para o espaço externo. É a saída do ateliê para o quintal, o artista principiando a questionar o universo externo que o cerca. Ameaçadoras, intimidantes estruturas, superfícies desgastadas, circundam esse novo viajante, que, como ele mesmo diz, considera seu quintal a ponta de lança, a embarcação para uma viagem ao desconhecido. A superfície que já foi lisa, lavada, saturada, com camadas sobrepostas de veladuras, cor somando cor, gestual, nervosa, aparece agora com elementos estranhos - matérias adicionadas, fios marcas de elementos impregnados e retirados, tiras de telas costuradas e recobertas pela pintura. Essa adição não é adesão ao movimento matérico, conseqüência de um modismo, mas uma nova dimensão, a textura apontando para outra realidade - dependendo da incidência da luz esse elemento adicionado se integra ou ressalta da superfície, indício de vida própria. E mais, esse novo elemento tem sentido plástico e por ter peso próprio, passa a ser um quadro dentro do quadro. A própria execução da obra é pensada e construída passo-a-passo, nada é aleatório, existe um traçado básico e os elementos são dispostos através dessa percepção inicial. Essa forma de pintar é uma constante na sua obra, que sempre foi planejada, nada ficando ao acaso. Voltando ao início destas considerações, lembro que o fio condutor da obra de Soncini é uma eterna indagação a respeito de si mesmo e do mundo, e aqui cito um romântico, Shelley: "Todos os poemas do passado, do presente e do futuro são episódios ou fragmentos de um único e infinito poema escrito por todos os poetas". Soa do mesmo modo sua afirmação ao dizer que desde o início está pintando o mesmo quadro - ele e o mundo, a garantia da própria condição da existência humana. WALTER DE QUEIROZ GUERREIRO, Membro da ABCA/AICA - 2003Décio Soncini Currículo artístico Antonio Zago - Revista "Isto É" - abr./1982 Alberto Beutemüller - Revista Visão/abr. de 1982 Enock Sacramento - Exposição - 1985 / Apresentação Olívio Tavares de Araújo - Exposição - 1988 / apresentação Radah Abramo - Revista "Isto É" - março/1989 Walter de Queiroz Guerreiro - Exposição - 1993 / Apresentação Walter Queiroz Guerreiro - Inédito - Maio/2008 Raul Forbes - Apresentação da exposição "Paisagens" - setembro/2011 Lúcia Chaves - "Os infinitos cantos do ateliê" - maio/2014 Walter de Queiroz Guerreiro - "Passagens" - agosto/2014 Enock Sacramento - 4.2 Gonzalez e Soncini - 2019 Walter de Queiroz Guerreiro - Luz e sombras - 2021 Walter de Queiroz Guerreiro - "Um dia um olhar..." - 2024
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